terça-feira, 28 de outubro de 2014

A Caverna de Adulão

O Mar Morto está morrendo. Gota a gota, a uma razão de aproximadamente 90 centímetros por ano, ele está recuando, turvando, acidulando, criando um cemitério salino. Encontra-se pouca ou nenhuma vida em suas águas e em suas imediações.
A erosão marcou a terra deixando muitas cavernas, sulcos e cânions esparsos: um lar para hienas, lagartos, abutres... e para Davi. Não por escolha, ele não queria trocar o palácio pelas terras assoladas pela erosão. Ninguém escolhe o deserto, ele o ataca de todas as direções — calor e chuva, tempestades de areia e de granizo. Preferimos quartos com ar-condicionado e becos sem saída — segurança.
Mas às vezes não temos direito de escolha. A calamidade chega e o telhado racha. O tornado ergue-nos e solta-nos no deserto. Não no deserto ao sudeste de Israel, mas no deserto da alma.
O isolamento marca tais épocas. Saul isolou, efetiva e sistematicamente, Davi de toda fonte de estabilidade.
As seis tentativas de assassinato acabaram com a carreira militar de Davi, que teve também seu casamento abalado por toda aquela perseguição.
Depois que Mical, esposa de Davi, o ajudou a escapar, Saul exigiu dela uma explicação. "Tive de fazê-lo", ela mentiu. "Ele me disse que o deixasse fugir, se não me mataria" (1 Samuel 19.17). Davi nunca mais confiou em sua esposa. Eles continuaram casados, mas dormiam em camas separadas.
Davi corre da corte de Saul para a casa de Samuel. Mas logo que ele chega, alguém diz para Saul: "Davi está em Naiote, em Ramá" (1 Samuel19.19).
Davi foge procurando refúgio em Jônatas, seu amigo e confidente. Jônatas quer ajudar, mas o que ele pode fazer? Deixar a corte nas mãos de um louco? Não, Jônatas tem de ficar com Saul, não pode ajudá-lo.
Sem lugar na corte, sem posição no exército, sem esposa, sem sacerdote, sem amigo. Nada a fazer senão correr. O deserto começa com separações. Continua com engano.
Vimos a má-fé, o desespero, a insegurança de Davi em Nobe, a cidade dos sacerdotes. A cidade era santa; Davi era tudo menos santo. Ele mentia sempre que abria a boca.
Foge para Gate, cidade natal de Golias. Tenta forjar uma amizade baseada em um adversário comum. Se Saul é o seu inimigo e Saul é também o meu inimigo, somos nós amigos, certo?
Nesse caso, errado.
Os giteus não são hospitaleiros. "Não é este Davi, o rei da terra de Israel"? — perguntam."Não é aquele acerca de quem cantavam em suas danças: 'Saul abateu seus milhares e Davi suas dezenas de milhares'?" ( 1 Samuel 21.11).
Davi entra em pânico, o desespero se apodera dele; é um cordeiro no meio de uma matilha de lobos. Homens altos, muros ainda mais altos. Olhares penetrantes, lanças cortantes. Gostaríamos de ouvi-lo fazer uma oração ao seu Pastor; ficaríamos agradecidos por uma manifestação da força de Deus. Mas Davi não vê Deus, ele vê confusão, busca os problemas com as próprias mãos.
Ele finge ser louco, riscando as portas da cidade e deixando escorrer saliva pela barba. Finalmente, o rei de Gate diz para seus homens: "Vejam este homem! Ele está louco! Por que trazê-lo aqui? Será que me faltam loucos para que vocês o tragam para agir como doido na minha frente? Davi então fugiu da cidade de Gate, e dirigiu-se para a caverna de Adulão" ( 1 Samuel 21.14-22.1).
Será que arriscamos imaginar essa cena de Davi? De olhos arregalados, tremendo como gelatina. Ele põe a língua para fora, rola na lama, resmunga e dá risadinhas, cospe, treme e espumeja. Davi finge ter uma espécie de epilepsia.
Eles o puseram para fora dos portões da cidade e o deixaram sem ter para onde ir. Por isso ele vai para o único lugar possível — o lugar para onde ninguém vai, porque lá nada sobrevive. Ele vai para o deserto, para o ermo, encontra um lugar chamado de caverna de Adulão. Lá encontra sombra, silêncio e segurança, estende-se sobre a terra fria, fecha os olhos e começa sua década no deserto.
Conseguimos relacionar nossa história com a de Davi?
Nosso Saul nos retirou da posição que tinhamos e nos afastou das pessoas que amamos, destruiu nossos sonhos, nosso lar e família?
Buscamos refúgio em Gate? Sob circunstâncias normais, jamais iriamos para lá. Mas essas não são circunstâncias normais, por isso  perdemos tempo na terra que cria gigantes. A cidade da confusão. Os braços de uma mulher ou aquele bar. Andamos por ruas escuras e lugares muitas vezes duvidosos.
Para que a multidão nos aceite, para que o estresse não nos mate, ficamos alucinados. Acordamos em uma caverna do Mar Morto, nas grutas de Adulão, no ponto mais baixo de nossa vida, como se tivessemos um cérebro de minhoca. Olhamos para fora e vemos um futuro árido, incerto, duro e despovoado, e perguntamos: "O que faço agora?".
Deixemos Davi ser nosso professor. É claro que ele fica desnorteado em alguns versículos. Mas, na caverna de Adulão, ele se anima. O fiel menino-pastor surge novamente. O matador de gigantes redescobre a coragem. Sim, ele tem a cabeça a prêmio, não tem onde recostar a cabeça, mas de algum modo se controla. Seu foco volta-se novamente para Deus e Davi encontra refúgio.
Imagine o filho de Jessé na penumbra: de joelhos, talvez com o rosto em terra, perdido em meio às sombras e aos pensamentos. Ele não tem para onde se virar. Se for para casa, põe sua família em perigo; se for para o tabernáculo, põe os sacerdotes em perigo. Saul irá matá-lo; Gate não o aceitará. Ele mentiu no santuário e se passou por louco para os filisteus; e aqui está ele sentado. Completamente sozinho.
Mas então ele se lembra de que, na realidade, não está só. E do fundo da caverna uma doce voz paira no ar:
"Misericórdia, ó Deus misericórdia, pois em ti a minha alma se refugia.
Eu me refugiarei à sombra das tuas asas, até que passe o perigo" (Salmos 57.1).
Façamos de Deus nosso refúgio. Não nosso emprego, nosso cônjuge, nossa reputação ou nosso plano de previdência. Deixemos que Deus, não Saul, nos cerque. Deixemos que Ele seja o teto que protege o ambiente da luz do sol, as paredes que detêm o vento, o alicerce sobre o qual estamos.
Jamais saberemos que Jesus é tudo de que precisamos até Jesus ser tudo o que temos.
Os que sobrevivem ao deserto encontram refúgio na presença de Deus.
Eles também descobrem uma comunidade entre o povo de Deus.
Quando seus irmãos e seu pai souberam disso, foram até lá para encontrá-lo. Também juntaram-se a ele todos os que estavam em dificuldades, os endividados e os descontentes; e ele se tornou o líder deles. Havia cerca de 400 homens com ele (1 Samuel 22.1,2).
Estavam em dificuldades, endividados e descontentes. Que bando! Desajustados, sim. A escória da sociedade, sem dúvida. Rejeitados. Perdedores. Marginais.
Assim como a igreja. Não somos os que estão em dificuldades, os endividados e os descontentes?
Irmãos, pensem no que vocês eram quando foram chamados. Poucos eram sábios segundo os padrões humanos; poucos eram poderosos; poucos eram de nobre nascimento. Mas Deus escolheu o que para o mundo é loucura para envergonhar os sábios, e escolheu o que para o mundo é fraqueza para envergonhar o que é forte (1 Coríntios 1.26,27).
Igrejas fortes estão cheias de ex-moradores de cavernas e dos que ainda moram em cavernas, pessoas que conhecem o terreno de Adulão. Elas contaram algumas mentiras em Nobe. Passaram-se por loucas em Gate. E não se esqueceram. E, por causa disso, imitam Davi.
Quem é Davi para mandar esses homens embora? Ele não é candidato à arquidiocese. Ele é um ímã para os marginais. Assim Davi cria uma comunidade de desajustados que buscam Deus. Deus faz deles um grupo poderoso: "Diariamente chegavam soldados para ajudar Davi, até que o seu exército tornou-se tão grande quanto o exército de Deus" (1 Crônicas 12.22).
Gate. Deserto. Caverna de Adulão.
Loucura. Solidão. Restauração. A fornalha de Deus, a pos graduação, o doutorado de Deus.
Davi encontrou todos esses três elementos. O mesmo acontece com muitos de nós. Estamos no deserto? Vamos arrastar-nos até Deus como se arrastaria um fugitivo até uma caverna. Encontremos refugio em sua presença.
Encontremos consolo no povo de Deus. Juntemo-nos a uma congregação de pessoas que apenas uma dádiva da graça separa da tragédia, do vício e do desastre. Busquemos comunhão na igreja de Adulão.
Refugiemos na presença de Deus. Nosso abrigo para sobrevivermos no deserto. Façamos isso e, quem sabe, no meio das lutas poderemos escrever os salmos mais doces, um poema de amor ao Deus que ergue do pó o desvalido e do monturo o necessitado. 

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